segunda-feira, 23 de junho de 2014

O brado.


A vida é autoexplicativa. Ela própria é a explicação de sua existência. Então, que vivam os vivos e que construam coisas! Aí vem a pergunta: "E agora, entendeu?". Ninguém entende. Então os vivos se reproduzem, muitas vezes em cima mesmo de coisas que eles construíram! Casas, tapetes, tábuas de madeira, camas, sofás. E então vem a pergunta de novo: "Entendeu?". Nada. "Entendi o que?". E qualquer tentativa é incompreensível. Então os vivos iniciam ondas de autoaniquilação. E ninguém acha nada. Uns levam a sério a própria bolhosidade efêmera diante a este nauseantemente colossal e gigantesco agora. Tudo é feito de um único e alucinante agora. É agora para todos os cantos. Essa é a explicação da vida. Ela já aconteceu agora. Tudo depois ou antes é rastro. O tempo é sensação involuntária e inerente a qualquer vida de sua repetida e ensurdecedora aparição nesse vasto único momento. É todo este barulho rompante de um abominável estalar de dedos. Um cavernoso bocejo com seu ápice de êxtase e sua caída ao sono. A vida pode ser insignificante, diante a sua desconsertante e titânica força em gritar com todas as suas partes, umas para as outras, da existência de outras explicações. Existem muitas. "E aí, pescou?". E o agora pode ser desligado a qualquer momento. Se toda a vida de agora se tornasse consciente de sua existência, seria como um suicídio sideral. Tudo seria cancelado. A vida depende de suas divergentes explicações, pois só é mantida com a sua estarrecedora capacidade de notar a si mesma. Dizem que se a vida, toda ela, deitada sobre este hoje, souber de si, de uma só vez, sumiríamos em pleno ar. Tudo voltaria a ser nada, para começar tudo novamente. Ou talvez seja o sonho de um cara. A vida é uma coisa que aconteceu e eu não lembro. A vida é uma descomunal e serena amnésia de seu próprio esplendorosamente e pavoroso urro de coisas. Abóboras, prédios, cadernetas, queijos, latas de verniz, paredes, chinelos, cheiros, ideias, lampejos. Notas soltas de uma harmonia enlouquecedoramente sutil. Dizem que quem ouve a musica  se torna louco, por não conseguir compreender. E a musica fica repetindo junto com a vida, ate voltar a ser um zumbido de qualquer besouro entre as plantas. A vida é um susto: uns desmaiam, outros acordam.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Osmar.



















Fora adotado
e acharam uma incongruência
insistiam com menino Osmar
que acabou por virar Osmares

osmares inundam a casa de alegria
em uma natação sem tempo
osmares brinda sua euforia
com seus braços de trapo ao vento

deixaram brincando no quintal
depois da barragem de areia
osmares sacodem,
levantam poeira

esperneiam os peixes
e serpentes marinhas
osmares cantam brisa

e em todas as coisas
que perduram pelos dias
a infância transborda
com mansidão e astúcia
 - para o mundo sumir -
e estar cheio até a borda
sem essas paredes engraçadas
feitas de pelúcia.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

A artimanha.



















Costumo amanhecer
já fadigado pelo vir do dia
jurava-me ser nuvem
ao ofegar a respiração

e na janela das conduções motorizadas
resplandece por trás dos prédios ainda em obra
tímido entre os guindastes
um sol de hoje:
diferente do de ontem
não mais o mesmo de amanhã

todas as preocupações
zipadas no fecho ecler
de uma mochila surrada
desembrulho mil coisas
que nem pareciam ali caber

o sono, doce convivência
me aborda no despertar
quando inicio uma caminhada
do quarto ao corredor
o dia quer entrar em casa

pelo basculante
janela, vitral

antes de descer as escadas
olho em perspectiva para trás
e a cozinha parece viva, em sua plenitude
enquanto o quarto lamenta
a falta de meu corpo sobre a cama
implacavelmente abandono meu lar
vivo, em sua própria existência

e me esperam as portas
os batentes
as grades, vidros

esperam incansavelmente
pelo meu regresso repentino

mas antes que a cama lance
sobre minha alma, um olhar de desdém
intercepta-me, ardilosa madrugada
com suas artimanhas:
farfalha a amendoeira
café, alguém

a cortina tampouco se importa
 - já estou em casa -

a cadeira me é tão familiar
sempre foi

só que agora sou objeto: existo com força
não sou pra mim
mas me preservo

intercepta-me, ardilosa madrugada
minha ressaca é saudade
que ao despertar
sempre relevo.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O impraticável.



























Quando eu impratico
gesto ou qualquer prática
adormecem na aspereza implacável
consequências de uma sobriedade pragmática

não sou algo
e algo me é

talvez eu seja uma consequência
que alguém lembrou
e então vivo por um instante
de setenta e três anos

e não me lembrem com a memória
tornem-me imemorável
não sou cotidiano, me assoprou o vento
onde os minutos falecem
de tão banais

se impratico essa prática
deixo de ser quem sou
passo a ser - de novo - alguém
que uma intenção recordou

porque se lembro, logo esqueço
e dependo de um esforço linear
que parte-se em dois

mas se recordo, reaprendo
sem palavras para explicar
me atinge, de súbito, um intento
aí não existo: passo a ser um lugar

disfarçado de endereço
convido-me a entrar
sou dessa casa, as paredes
que mudas
estão sempre a me espreitar.

domingo, 20 de abril de 2014

Amaro.


















Desenrolei, sem jeito
do papel verde e branco
seu gosto era amaro
só por ser breve

mordi derretendo;
chocolate acre
era um corpo
que já o meu

se desse em árvores
colheria maduro
e viveria impregnado
do agridoce que seria

ter meu corpo um outro
e ser pleno
às seis da tarde
quando se vai o dia

rindo do poder absoluto
de parecer imóvel
eu e chocolate
já somos parte da mobília

o amargo
vai entortar os prédios
e ondular o chão

remexe, chocolate derretido
e inunda de fel
todas as linhas da minha mão.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A porta do estaleiro.



















Enquanto o sol esquenta
e o concreto inflama
descem importantes, os homens
a escada da estação Uruguaiana

atrás do blusão de linho
tilinta a camuflagem
dissipa o ar afobado
no andar apertadinho

enquanto minha mochila vazia
pesa quatrocentos e vinte navios
arrasto a âncora pela mista paisagem
e danço um tango ao som de sirene e buzina

porque são muitos universos:
no bar bebem,
comem e riem, espalhafatosos
outros caçam a janta com pelos
no boeiro da esquina

sem cerimônia
o ônibus parte
as pessoas falam - mas só falam
a vida parece prosseguir

quando todos estão indo
ainda que sem saber
nos mantêm vivos e em alarme, o belisco
de acordar sem doer

até que içam as velas
quatro centenas de navios (mais rápidos que a ideia)

no vão das pupilas dilatadas
unem-se todas as metades
me encaram fixos e sérios, os marujos
com seus olhares de fulminar verdades.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Apolo treze.

















Me queima o omoplata
e some certo na decolagem
na correnteza vai-se a cabeça
boquiabre-se maxilar primata
no início da viagem

teu violão de quarenta anos
venero como paisagem
me toca as cordas vocais
sem querer canto rouco
num timbre selvagem: urros vogais

na estratosfera assisto louco
meu corpo virar imagem
já desprendidos de mim
pedaços aleatórios
de toda aparelhagem

sou corda sem timbre
paralisada assim
prolongo ao redor da Terra
porque me vibra o mundo
no meu filme-ideia sem fim

protótipo sem destino
mal vou lembrar
do meu corpo todo dormente
só volta à Terra o módulo lunar.